Hoje, aniversário da Dona Norma no Clube do Commercio.
Eu sempre me prometo que vai ser a última vez, porque eu acho um saco almoçar com ela. Com todo o respeito, afinal, são 89 anos, mas é um chute na perereca aguentar o mau-humor, as tiradas grosseiras, as piadas sem graça e o jeito que ela cospe os pedaços de galinha. No mais. Você olha e zás! Lá vem voando, em cuspe de rápido movimento, um pedacinho de carne branca recém-tirado do meio dos dentes. E creio que ela não enxerga mais direito, então os terninhos, outrora sempre impecáveis, vivem sujos do caldo da última refeição. Que pode ter sido há um mês ou um ano atrás.
E a disputa entre os filhos? Caramba! Tanta coisa que eles tem para resolver...tanto esqueleto no armário. - Lembra de quando eu tinha treze para catorze anos e o fulano fez isso e ela reagiu assim? Gente, se bobear não lembro o que eu comi ontem, quanto mais a cor do vestido que eu usava quando caí de bicicleta pela primeira vez. Eles precisam depurar e é nestes encontros, catalisados pela maternal senhora, que eles conseguem. Meno male. Ao menos isso. O problema é o gritedo na mesa, mas acho que ninguém liga. Devem pensar que é uma italianada alegre solta na capital...
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Aí eu lembro o que eu fui fazer lá. Eu fui conhecer estas pessoas que por um azar ou sorte do destino eu chamo de mãe, de tia, de primo e de avó. Eu não me divirto, não, nunca. Volto para casa cheia de gavetas abertas e muitas vezes emputecida. Muitas vezes aliviada.
Eu quero entender quem eu sou e para isso preciso saber de onde vim. É terapêutico, apenas isso. E de quebra mato as saudades dos meus primos, que eu realmente amo, e como os bolinhos de arroz mais deliciosos de porto.
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E como é fácil juntar as peças quando a gente está no caminho de si mesmo. A gente percebe os movimentos, as manipulações, os segredinhos varridos para debaixo do tapete.
Falamos de meu avô, pela primeira vez. Bem, na verdade foi a primeira vez em 32 anos que eu conversei como adulta com meu tio e descobri que ele é um cara legal. Que fez análise, que teve sonhos como qualquer homem, que queria ter sido aviador. Mas era tão burrinho, segundo a mãe dele e como estava sempre para morrer (havia nascido azul!!! o que seria isso exatamente? próximo aniversário eu descubro), então nunca deixaram ele ser quem ele queria. E valia até meu avô ir ter com o coronel da aeronáutica para desfazer a inscrição dele quando finalmente quis sair da casca - leia-se saia da Normetta. E aí podaram as asas dele para sempre, literalmente. E um dia, o sonhador Ícaro casou-se com a amiga da mãe dele. Freud explica. Ponto final.
Mas não foram só estas asas que se descolaram. Para cada filho, várias penas... E a comparação vem inevitável e fico com raiva. E adoro sentir raiva hoje, porque durante toda a minha vida eu não me permiti sentir. E como é bom. Sou humana. E sereno de novo, porque me permito ser duas, três ou sete no período de uma hora.
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Um dia eu e Luciana conversamos sobre esta coisa interessante que é a perpetuação de certas neuroses dentro da estória de uma família. Comecei então a traçar os paralelos e consegui definir os papéis de cada um na estrutura - eu também tenho o meu e as minhas neuras, mas a vital diferença é que a virose parou em mim. Entendem? Um processo vai eternamente correr em linha reta se não lhe freiamos. Temos que identificar a rota, puxar o freio de mão, analisar qual BR está mais bem conservada e seguir, apenas seguir. Isso é muito budista, risos... Lembrei dum momento em minha vida que deixei alguém ir embora e não revidei, não criei caso, não lutei. Porque naquele momento lutar era perpetuar uma situação negativa e estressante para ambos. Logo mais, ele voltou, porque havia entendido que estava errado. Já disse um samurai japonês que quando sabemos que o oponente pode ser derrotado, a melhor arma é a paciência...tempo, tempo.
Sei que nada posso fazer, não posso consertar o passado de cada um dos presente á mesa, mesmo que meu coração sonhador pense nisto ás vezes, ou atire a primeira pedra quem nunca sonhou em ter uma famiglia perfeita. Tampouco julgo ninguém, apenas tenho minhas considerações a fazer sobre cada um de nós, pois todos fizemos o que podíamos e conhecíamos, o que nos estava disponível emocional e materialmente. Isso é dormir em paz.
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Agora também consigo ver de que forma fomos todos afetados pela arquetípica Grande Mãe, personificada desde o tempo da Nonna primordial. Desde já afirmo que nunca fomos uma família masculina - o homem nunca teve nem a primeira nem a última palavra lá em casa, nem na casa de meus primos. Quem mandava era primero a avó, depois a mãe, e por último as filhas, tanto do lado dos Maioli quanto dos Mussoi. E o prefixo della já adianta que somos todos descendentes de uma mulher, no caso, da Signora Nicoletta della Coletta. Não era comum uma mulher transmitir o nome para as gerações futuras, então realizo que ela deveria ser uma mulher daquelas de marcar território bravamente. O que me orgulha muito, feminista que sou, mas que não é o ideal quando temos que contrair núpcias ou escolher um consorte para fecundar nossos óvulos. Isso explicaria a aversãs das mulheres de nossa família a homens fortes e corajosos ao seu lado, optando por parceiros que sempre pudessem ofuscar e submeter, e aos homens, bem...deixo reticências, pois há casos de sucesso. Dizem.
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Fora isso, falando agora do outro lado do clã, foi um final de semana de memórias fortes e inesquecíveis. Acordei cedíssimo de manhã, para iniciar o ritual do Sugo da Nonna Rosa (as avós estão onipresentes neste blog atualmente...).
Oito horas e eu lá na cozinha, pelando dois quilos de tomatinho vermelho suculento, descascando em pedacitos firmes meio quilo de cebolas choronas junto com uma cabeça careca de alho. Juntei um maço de cebolinha verde, manjericão, louro e o tempero secreto - que revelei aos convivas antes do empanturramento coletivo. Quatro horas cuidando daquela panela como se fosse um nenê no berço. Desculpem o tocadilho, mas é exatamente assim que eu me sinto quando faço este molho. Primeiro porque não é sempre, segundo porque é um momento eu-comigo-e-minhas -lembranças queridas e terceiro porque cada segundo sentindo aquele aroma me lembra da nonna Rosa e sua pizza napolitana festiva ou de seu molho de cachorro quente. Em resumo: amor, amor e amor traduzido em calorias. Todo santo ano ela me dava de presente de aniversário a pizza com uns panos de prato cujo bico ela havia bordado. Que fofa!
Um dia, e aí conto o segredo, ela foi lá em casa porque eu queria que ela me ensinasse o molho famoso. Era algo secreto mesmo, ninguém sabia o que ia dentro. E mesmo assim era só uma salsa de tomate!
Pequenina, já fraquinha, em frente ao fogão, ela disfarçava e eu deixava ela acreditar que eu não queria saber.Mas eu acho que ela já sabia que não estaria mais aí no próximo ano e então decidiu me dar o presente: um pote de vidro cheio de cravo e canela em pau.
-Toma, esse pote é teu. E continou a mexer com a colher de pau o caldeirão vermelho-sangue efervescente. Até hoje ele está comigo.
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Não sei se foi a estória do segredo ou a emoção do vinho que já afrouxava os sentidos, mas o fato é que os três pacotes de spaghetti foram rapidinho. E teve até quem limpou o molho do prato com pão.
Ela ia se orgulhar de mim, bah! Tenho certeza...
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E acho que por hoje era só. Sessão psicanalítica agora só de quinze em quinze dias.