Tenho acordado mais cedo que de costume, e sempre é prazeroso, porque há uma orquestra esperando a gente amanhecer por aqui. Juro, nem no interior eu tinha tanta passarinhada no meu entorno...Deliciosamente reconfortante, onírico até! Acordo mais cedo porque meu inconsciente festivo parece querer que meu dia aproveite mais as horas que me foram dadas, pois não há despertador, há um despertar, daqueles que a gente fica se espreguiçando com carinho, sentindo cada músculo acordar junto. Mas lembrei que eu tenho um despertador peludo, porque a Dharma aprendeu, entre outras coisas (depois de achar que a pia do banheiro é um vaso sanitário mais bacana), que o espelho me reflete: ela olha para ele, fixamente, com aqueles olhos enormes, verdes e tão amados e começa uma cantoria fina, parece que cuidando para não me assustar, afinal são seis da manhã! E acaba pulando em mim depois que eu a olho nos olhos (quanta redundância, acho que isso é amor...risos) , com carinho e digo: Vem! Levantamos e ela, saltitante, caminha comigo até a cozinha, se enrolando em minhas pernas, pedindo delicadamente: - Coloca mais um pouquinho de ração aí? Claro que eu não resisto e encho até a boca. A chaleira já tem água, a coloco para ferver e aproveito para preparar minhas frutas com granola. O pão vai no forno com um pouco de manteiga e ás vezes uma generosa dose de geléia de gengibre com ricota de búfala (ah! eu amo meus detalhes!). Pronto, iniciei meu ritual matutino. O café recém-passado vai até a boca da minha starbucks guerreira, com dois envelopes de adoçante, nem mais nem menos. Disposto na bandeja, meu café da manhã se instala na poltrona. Acendo um incenso e fico aí uns vinte, trinta minutos, sentindo os aromas, sorvendo meu café devagarito, olhando a Dharma perseguir o que pode ser tanto uma mosca, um pardal pequenino ou uma folha seca. E o dia começa a barulhar suas portas, suas janelas, suas buzinas, seus gritos, seus cantos. E seus odores fedorentos também.
Rotina, sim, diária. Que me excita, me acalma e me faz feliz. Mas mais feliz ainda é o domingo, pois eu tenho a companhia da zero hora. Que tem um conteúdo de merda, vamos combinar, mas que faz parte de mim, assim como ligar a tv as sete da manhã só para ver os Fagundes cantando “ ...porque de mim vai ficar, o mundo que eu construí, o meu Rio Grande o meu lar”. Todos os domingos na casa dos meus pais estão impressos na minha memória. Como é que o aroma do café chegava até meu quarto? E o barulho ao fundo, da tv do pai ligada no Canal Rural? Ele estava realmente assistindo? Risos...E o cheiro do Correio do Povo na mesa, sendo lido pela mãe. Com uma mão ela segurava o pão dágua fresquinho com manteiga e com a outra não deixava cair os óculos. Como ela segurava o jornal? ! Céus, como eu amo estas lembranças! De forma direta, de forma suave, de forma a não sentir dor, mas pleno amor.
E é melhor parar por aí, porque já estou com a voz interna embargada...
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“ If you trust in Nature, in the small things that hardly anyone sees and that can so suddenly become huge, immeasurable; if you have this love for what is humble and try very simply, as someone who serves, to win the confidence of what seems poor: then everything will become easier for you, more coherent and somehow more reconciling, not in your conscious mind perhaps, which stays behind, astonished, but in your innermost awareness, awakeness, and knowledge. You are so young, so much before all beginning, and I would like to beg you, dear Sir, as well as I can, to have patience with everything unresolved in your heart and to try to love the questions themselves as if they were locked rooms or books written in a very foreign language. Don't search for the answers, which could not be given to you now, because you would not be able to live them. And the point is, to live everything. Live the questions now. Perhaps then, someday far in the future, you will gradually, without even noticing it, live your way into the answer.”R MR, Letter Four. Worpswed; July 16, 1903.
“ And to speak of solitude again, it becomes clearer and clearer that fundamentally this is nothing that one can choose or refrain from. We are solitary. We can delude ourselves about this and act as if it were not true. That is all. But how much better it is to recognize that we are alone; yes, even to begin from this realization. It will, of course, make us dizzy; for all points that our eyes used to rest on are taken away from us, there is no longer anything near us, and everything far away is infinitely far. (…). We have no reason to harbor any mistrust against our world, for it is not against us. If it has terrors, they are our terrors; if it has abysses, these abysses belong to us; if there are dangers, we must try to love them. And if only we arrange our life in accordance with the principle which tells us that we must always trust in the difficult, then what now appears to us as the most alien will become our most intimate and trusted experience. How could we forget those ancient myths that stand at the beginning of all races, the myths about dragons that at the last moment are transformed into princesses? Perhaps all the dragons in our lives are princesses who are only waiting to see us act, just once, with beauty and courage. Perhaps everything that frightens us is, in its deepest essence, something helpless that wants our love.” RMR, Letter Eight. Sweden. August 12, 1904.
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Tenho revisto objetos, livros, cd´s, roupas e sapatos e a pilha do desapego aumenta a cada dia. A idéia era vendê-los mas irei doá-los e guardarei o essencial, aquilo que me diz respeito. Já tenho uma mudança, de novo, para fazer. Eu passei vinte anos no mesmo quarto. E agora mais dez pulando de lar em lar. Meus lares, quero esclarecer, que eu mesma construí e que me fizeram muito feliz. Onde está meu centro é meu lar, e assim, bem, eu posso morar em qualquer avenida!
Quando a gente se deixa levar, a gente é levada pelo fluxo natural da ordem das coisas. Como sempre deveria ter sido. E se a gente faz isso sem culpas, as coisas não te encontram atrasada nem te inquirindo: - Porque só agora? Elas vem, te estendem a mão e ainda dizem: - Chegou na hora certa, estávamos todos te esperando. Teve uma boa viagem?
Sonhei anteontem e o sonho falava algo sobre isso, na forma poética que lhe é peculiar: Eu estava sentada sobre um grande gramado verde, florido, e deveria ser aquele intervalo gostoso entre o inverno e a primavera, porque a sensação era de sol morno e brisa suave. E de repente a grama foi se abaixando á minha frente como se um grande cortador de grama estivesse passando. Cheiro de grama cortada, que delícia! E eu pude ver o um mar através da grama, de um azul contrastante. Fantástico. E eu lembro que eu sorri imediatamente, porque vi muita gente conhecida lá. Pessoas que eu não conheço, mas a sensação era de familiaridade. O desconhecido conhecido. Alguém mais já teve esta sensação? Depois da estória do Mar Morto, eu quero dizer...risos!
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All my good wishes are ready to accompany you, and my faith is with you.
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Terminei ontem a leitura de Espelhos do Self. Finalmente, porque é o típico livro ‘ soco nas tripas’. Não dá para sair sem contusões, escoriações e manchas roxas após sua degustação. Arquétipos, archetypes... O Puer Aeternus? A avó Bondosa, o pai Fortaleza, a mãe Devoradora, a irmã Eu Sou Ela...tantos paralelos. Mas algumas coisas fermentaram aqui dentro, e foi interessante porque neste amanhecer ao reler Rilke - porque ele esta sempre aqui como o Tao, pronto para ser aberto a esmo e, voilá, ser decifrado em algo como a mensagem do dia – assinalei esta frase: “ And one more thing: Don't think that the great love which was once granted to you, when you were a boy, has been lost; how can you know whether vast and generous wishes didn't ripen in you at that time, and purposes by which you are still living today? I believe that that love remains strong and intense in your memory because it was your first deep aloneness and the first inner work that you did on your life.
O que ele quis dizer, bem, vamos por partes, porque agora a Claro pega até dentro do meu closet:
Estamos no útero, quentinhos e banhados naquele líquido suculento no que parecem ser eras. Um dia, um clarão surge e opa, é o fim do túnel, literalmente. Mas não entramos, saímos. Somos espancados, o ar invade nossos pulmões e começamos a morrer lentamente. Parentêses: Eu cá creio que a vida é um engano, um puta engano. Saímos de um buraco para entrar noutro. Depois de um ano, quinze, cinquenta e seis ou cento e vinte ninguém sabe. O mundo continua, só a gente que vai embora. Injustiça! Para quê, qual o motivo desta viagem sacolejante de ônibus do Chuy até Rio Branco? Não sei, Ninguém sabe. Continuemos...
Então, depois de um tempo, você encontra o que denomina o Outro Sol, Aquele sem o qual eu não poderei viver se não estiver á sua sombra, orbitando ou sendo sua Lua. E passa a acreditar (você ainda é a-individuado) que esta é a sua metade e nada mais existe, você foi fundido no outro, sem limitação de barreiras. O pertencer sem questionar. O Outro sou Eu que no jargão psicanalítico chamam de o Colapso do Ego. E então quando o Outro vai embora você sente com se estivesse sendo levada também mas ainda está aqui. Sensação estranha: falta um pedaço que ninguém levou. Socorro!
Há quem culpe o Sr.Aristófanes pelo mito da laranja, a Natureza pela serotonina liberada no processo da paixão, ao Romantismo pela rejeição á racionalidade. Mas a grande origem deste processo narcótico denominado Paixão é aquele aquoso lá do início. Não tenho dúvidas. Eu quando nasço não sei que sou a Fabiana. Sou um pedaço de carne, músculos e ossos totalmente dependente e chorão, mas, um dia, reconheço-me, e não gosto disso (estou conjecturando...não sou psicóloga) não quero ser eu, quero ser Nada! Ou ainda: sou frustrada porque meu chocalho me é tirado ou meu bico desaparece. Òdio mortal ao mundo - Eu quero voltar!!! Me engula de volta Grande Mãe!!!
Claro que nenhuma mãe será Cronos e então eu cresço, com aquela sensação incômoda lá no fundo da mochila, indo sempre em busca do outro para suprir esta vontade de voltar, de juntar-me ao Algo Inominável de onde saí, local de sensação de onipotência, difícil de ser superado. Por isso tantos mitos de Mãe Terra, daquela que engole sua criatura após a vida vivida. Por isso também tantos homens e mulheres difíceis de aguentar! Fantasias inatingíveis = tédio mortal. É por isso que eu vivo a realidade!!!
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Hummm...Eu tenho um mundo interno viajante, e andei pensando, numa destas paradas em BoraBora, que eu poderia tentar, após o Master, uma post laurea em Psicologia. Parece bom.
Voltaremos.